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Professora de gastronomia da Una apoia movimento pelo uso dos tachos de cobre na tradicional doçaria mineira

Iniciativa tem como objetivo discutir a importância do utensílio para a preservação da culinária local. Resolução que restringe materiais de cobre no ramo alimentício ameaça a continuidade do fazer artesanal que ultrapassa gerações

No Ano da Mineiridade, instituído em 2022 para ressaltar as peculiaridades e a tradição do povo mineiro, voltou à tona a discussão sobre o uso dos tachos de cobre na produção de doces artesanais, uma parte importante da identidade gastronômica do Estado. Uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de 2007, restringiu a utilização do utensílio no ramo alimentício, colocando em xeque a tradição e um legado cultural que ultrapassa gerações. O argumento é de que a absorção excessiva do metal provoca desordens neurológicas e psiquiátricas, danos no fígado, nos rins e outros malefícios.  

A professora de gastronomia da Una, Rosilene Campolina, que está puxando um movimento em favor da preservação da doçaria mineira, explica que o tacho não é vilão da história, mas um tipo de oxidação esverdeada chamada azinhavre que se forma nestas superfícies quando expostas ao ar úmido, mas que é inteiramente retirada quando os utensílios são lavados com bucha e uma solução ácida que pode ser vinagre e sal ou limão e sal. “Todas as doceiras sabem disso. É tão necessário debater sobre este tema quanto buscar os atores deste cenário que envolve a cadeia produtiva da gastronomia, as memórias afetivas e o ofício de grandes mestras mineiras. Precisamos mostrar e provar cientificamente que o uso do tacho de cobre é viável e necessário para continuidade desta tradição ancestral que imprime a nossa mineiridade e interfere, sim, no produto final”, diz.

Crédito: Divulgação/UNA

Segundo Rosilene, a goiabada cascão, o doce de leite, de figo, de abóbora entre tantos outros típicos da região, ajudam a movimentar a economia e o turismo. “Uma das principais atrações de Minas Gerais é a sua cozinha, repleta de valores e tradições. Não é à toa que Belo Horizonte recebeu o título mundial de cidade da gastronomia criativa pela Unesco, e os doces tradicionais, feitos no tacho, são parte disso. Com a resolução, muitas doceiras abandonaram o ofício que, em muitos casos, fazia parte do sustento das famílias”, diz. No movimento, pesquisadores, estudiosos, produtores, doceiros e comerciantes criaram uma associação para mobilizar o poder público e pedir a adequação das normas vigentes.

A engenheira química Amazile Biagione diz que “o cobre está presente em todos os seres vivos, animais e vegetais, desempenhando importantes funções. É elemento mineral indispensável a processos vitais, por isso é referido como micronutriente essencial”. Segundo ela, à diferença do alumínio e do chumbo, o cobre não é considerado tóxico porque não tem qualquer efeito acumulativo no organismo. “É importante que existam normas que garantam boas práticas para produção de todos os alimentos, mas, no caso dos doces artesanais, a proibição dos tachos de cobre é um encaminhamento simplista, atrelado a prejuízos socioeconômicos e culturais, sem nenhuma comprovação de benefício para a saúde dos consumidores”, diz.

Além das fronteiras

De norte a sul, de leste a oeste. Cada região de Minas Gerais conta com sua especificidade e vocação. E esse fazer com traços de mineiridade ultrapassou as fronteiras do estado, conquistando paladares nos diversos cantos do país e até do mundo. O doce de abóbora produzido em Poços de Caldas, no Sul do estado, por exemplo, virou atração turística na loja Doces da Roça, do produtor Glaucio Peron. Ele ganhou visibilidade internacional no livro dos recordes por duas vezes ao atingir a marca de maior doce do Brasil, com seus 551kg e depois com 630kg. A peça carrega na alma a essência do doce mineiro em tradição repassada pela avó e por sua mãe, através das receitas da família feitas no tacho.

“Acredito que um povo é regido pelas suas tradições, seu modo de ser e de agir. Infelizmente, o Brasil adotou uma política de segurança alimentar norte-americana, então, pasteuriza-se tudo, matando o que é natural e deixando tudo homogeneizado. A nossa associação de produtores de doces tem como principal campanha preservar a herança gastronômica, por meio do reconhecimento e valorização dos modos de fazer os nossos produtos e da perpetuidade da doçaria mineira do jeito que ela sempre foi. O Ano da Mineiridade é a oportunidade de falar que queremos manter a tradição de se fazer doces da mesma maneira que nossos ancestrais faziam”, destaca Glaucio.

Em São Bartolomeu, na região Central, a tradicional produção de doces artesanais foi registrada como Patrimônio Imaterial, desde 2008, e é considerado um valioso atrativo turístico do distrito. A goiabada de Ouro Preto é o mais famoso da região e acabou se tornando uma herança cultural que atravessa gerações. “Como nosso modo de fazer conquistou o reconhecimento de Patrimônio Imaterial, obtivemos uma autorização para seguir com esse ofício nos moldes tradicionais, utilizando os tachos de cobre”, explica a doceira de São Bartolomeu, Pia Márcia. O segredo, em todos os casos, está na correta utilização do utensílio, especialmente na retirada do azinhavre com a solução de sal e limão. Assim, preserva-se o sabor, a cor e todos os elementos que constituem a identidade gastronômica e cultural dos doces de Minas Gerais.