Restauro e reforma do Armazém da Utopia entrega espaço cultural inovador no país mantendo memória portuária e tradição do teatro dos trabalhadores
Obra de R$ 36 milhões, com apoio financeiro do BNDES e patrocínio master da Shell e do Instituto Cultural Vale, expande projetos da Companhia Ensaio Aberto com restauro do galpão centenário, novos espaços cênicos, teatro found space com arquibancada retrátil, travessa aberta para o cais, restaurante à beira-mar e uma programação intensa – e gratuita – para o primeiro ano, a partir de agosto Marco fundador da cidade que recebeu o maior número de pessoas escravizadas do mundo, a Zona Portuária tinha um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano do Rio de Janeiro em 2010. Foi naquele ano e cenário que a Companhia Ensaio Aberto, já consolidada na cena nacional com seu teatro épico, acreditou em um sonho: transformar em sua casa-sede o então degradado Armazém 6 e seu galpão anexo, na Avenida Rodrigues Alves, uma via para a qual a cidade havia virado as costas.
No dia 29 de junho de 2024 – 14 anos, 15 espetáculos, e um Elevado da Perimetral implodido depois –, o agora consagrado Armazém da Utopia, tombado imaterialmente pelo estado e município do Rio de Janeiro, palco das criações da Ensaio Aberto e de grandes eventos culturais do Rio, torna-se um equipamento único no país, hoje com boulevard para pedestres em sua entrada, uma estação de VLT que leva seu nome na porta e uma vizinhança reurbanizada.
A partir deste momento, o Armazém da Utopia poderá se consolidar como um porto aberto para receber coletivos irmãos do Brasil, América Latina, África e de todos os lugares do mundo, e se tornar, dessa forma, uma nova casa para todos esses coletivos, um centro de produção criativa com laboratórios artísticos e técnicos, desenvolvimento da nossa tecnologia social de formação de público e democratização de acesso, mantendo a vocação de porto, lugar de abrigo – lugar onde outros coletivos possam “fundear ou amarrar e estabelecer contatos e comunicação, lugar de descanso e de refúgio, de chegada e de partida, unindo porto e cidade”, explica o diretor e fundador da companhia, Luiz Fernando Lobo.
Sem interromper as atividades artísticas e de formação técnica da companhia, fundada em 1992 e responsável pela gestão do espaço desde sua mudança para o local em 2010, o armazém foi inteiramente restaurado durante um ano. O investimento de R$ 36 milhões veio do apoio financeiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que financiou R$ 12 milhões, da Shell e do Instituto Vale – R$ 10 milhões de cada um. Complementam o montante as empresas MRS Logística, Multiterminais e Universidade Estácio de Sá/Instituto Yducs. “Toda a obra foi viabilizada com recursos da Lei de Incentivo Federal – Lei Rouanet”, diz Tuca Moraes, diretora-executiva, atriz, produtora e fundadora da Companhia Ensaio Aberto.
“Parecíamos ciganos dentro do Armazém. Era importante mantê-lo aberto durante as obras. Estreamos um espetáculo, uma exposição e continuamos com nossas oficinas e estudo do Teatro dos Trabalhadores”, conta Luiz Fernando Lobo. “Estamos entregando o equipamento modernizado, mas isso faz parte de uma expansão. Ele foi inaugurado em 1910, quando a cidade negra era posta abaixo em um projeto eurocentrista de branqueamento do Distrito Federal. Paradoxalmente, o restauro assume um caráter oposto nesse momento, pois o Armazém da Utopia restaurado é memória de luta dos escravizados e da cidade do Rio de Janeiro.”
Reinauguração em duas etapas: junho e agosto
A reinauguração será feita em dois momentos: em junho fica pronto o armazém 6, de
3.300 m². A estrutura do galpão histórico, de tipo inglês, foi restaurada respeitando o projeto original, algo raro entre os 18 armazéns construídos no Cais da Gamboa, e mantendo a arquitetura singular com grande vão central no interior, característico do passado portuário. A grandiosidade do espaço comporta uma diversidade de eventos culturais e sociais, a exemplo dos já realizados, MURS do La Fura Del Baus, Festival de Cinema do Rio, Festival Panorama de Dança, Back to Black, Festival Multiplicidade e lançamento de álbuns como “Ladrão”, do rapper Djonga, instalações como a NBA House e festas diversas, além de projetos mais arrojados da companhia, como os espetáculos Missa dos Quilombos, Dez Dias que Abalaram o Mundo e O Dragão.
Todas as pontes rolantes, marquises, portões e telhado foram recuperados, e as telhas substituídas. O projeto de luz preservou a iluminação zenital natural e original. Paredes internas e externas passaram por restauro e pintura. Os gradis foram substituídos, toda a estrutura metálica renovada e calhas reconstruídas. Não houve um tijolo sequer, dos milhares que compõem a fachada, que não tenha sido tratado. Tudo isso será reaberto ao público no dia 29 de junho, com a presença do Prefeito Eduardo Paes, da Ministra da Cultura, Margareth Menezes, de autoridades, parlamentares e grande público, muitos que formaram junto com a Ensaio Aberto um enorme exército defensor desse espaço.
Dois meses depois, em agosto, a reinauguração do espaço se completa com a conclusão da obra no galpão anexo, de 1.750 m2, onde ficará o Teatro Vianinha (em homenagem ao dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho), um dos palcos dos espetáculos da Ensaio Aberto e de companhias visitantes. Será um teatro multiuso, tipo found space, para 300 pessoas na menor configuração e 500 na maior. Com o fim da obra, a área construída do armazém e do seu galpão anexo aumenta quase 50%, passando de 5.050 m² para 7.417 m².
Teatro found space: um novo formato a cada espetáculo
O teatro terá um sistema retrátil de arquibancada, importado de Londres. Dependendo da configuração do palco – italiano ou em formato de arena, por exemplo –, a arquibancada pode se transformar em menos de cinco minutos. “Podemos fazer uma plateia italiana, uma arena de dois, três ou quatro lados, um palco-sanduíche, um palco elizabetano… São diversas possibilidades, o que para o nosso trabalho é essencial, porque a gente sempre brincou muito com isso, e o público nunca sabe o que esperar do nosso próximo espetáculo”, explica Lobo.
Além do Vianinha, haverá muitos espaços no anexo do armazém, no segundo e terceiro andares, que antes da obra não existiam. Entre eles, a Sala Sérgio Britto, com 220 m² – um espaço multiuso para novos espetáculos e performances teatrais –, a sala de ensaio João da Neves com 109 m², a sala de estudo Leandro Konder, laboratórios de corpo, de figurino, de objetos de cena, de iluminação e de cenografia, salas de produção, de acervo técnico e artístico, três camarins – o maior deles para 45 pessoas –, o espaço de convivência Aderbal, em memória do companheiro e diretor Aderbal Freire Filho, para elenco e técnicos, a copa-cozinha Adélia Lázari, sete apartamentos para artistas e técnicos visitantes, almoxarifado, lavanderia, sanitários e vestiários para os cerca de 70 trabalhadores do armazém – hoje são 45, mas o número vai subir.
Em uma área reservada para a gestão do espaço, também no anexo, serão inaugurados escritórios para direção artística, direção executiva e produção, operacional e administrativo (financeiro e captação) – todos com espaços adicionais de reunião e para assistentes. Haverá ainda duas salas para as companhias visitantes trabalharem. Todo o espaço terá acessibilidade arquitetônica para pessoas com mobilidade reduzida.
Como a ideia nasceu
Desde sua fundação, há 32 anos, a Companhia Ensaio Aberto propõe um teatro que recupere “a vocação de trabalhar desafios gerais, sentimentos gerais, esperanças gerais, complexos, contraditórios, desiguais”, como definiu o poeta Pedro Tierra. Uma companhia que, “como o próprio nome já indica, explora a ideia do ensaio como experimento e por ela pauta a sua intervenção na cena brasileira”, segundo a pesquisadora de teatro Iná Camargo Costa, professora aposentada da Universidade de São Paulo.
Foi para cumprir esse propósito que o projeto de restauro e modernização foi pensado. Não há nada parecido no país com o que a Ensaio Aberto está prestes a inaugurar – algo que só encontra paralelo, embora com maior complexidade, na Cartoucherie, como é conhecida a sede da companhia Théâtre du Soleil em Paris, fundada em 1964 por Ariane Mnouchkine e Philippe Léotard.
O projeto começou a ser elaborado há mais de 15 anos, quando os fundadores da companhia, Lobo e Tuca Moraes, participaram de um simpósio em Póvoa de Lanhoso, uma vila de 20 mil habitantes no distrito de Braga, em Portugal, sobre construção e restauração de teatros em equipamentos históricos.
Jean-Guy Lecat, o aclamado cenógrafo, arquiteto e theather maker que o diretor inglês Peter Brook chamava de Monsieur Space – eles trabalharam juntos durante 25 anos em mais de 200 performances –, estava presente no encontro restrito a 30 criadores das artes cênicas de diferentes países. “Ele se encantou tanto com o projeto que se ofereceu para ser o arquiteto”, lembra Tuca, que atuou em todos os espetáculos da companhia.
Mas quem também estava no simpósio era o arquiteto teatral, cenógrafo e artista plástico
J.C. Serroni, reconhecido internacionalmente como o maior fazedor de teatros brasileiro, responsável por quase uma centena de projetos cênicos, parceiro de quase três décadas do diretor Antunes Filho. Depois de meia hora de reunião e alguns almoços e jantares com Lobo e Tuca durante o simpósio, o martelo foi batido: Serroni seria o arquiteto.
“A Cartoucherie, do Théâtre du Soleil, é a inspiração que mais se aproxima do nosso projeto. Vou muito a Praga, lá eles têm o Industrial Palace, mas não pertence a uma companhia de teatro permanente. Pode até existir, mas não conheço nada no mundo que se compare ao que estamos fazendo”, diz Serroni.
Primeira estreia: “O banquete”, de Mário de Andrade
O Teatro Vianinha será aberto ao público pela primeira vez na estreia do espetáculo “O banquete”, obra derradeira de Mário de Andrade – e não-acabada devido à sua morte em 1945 – na qual o protagonista, Janjão, um compositor pobre, tem diálogos críticos de raíz social sobre a eurocentrização da arte, sobre a alta sociedade paulistana e a vida cultural da cidade nos anos 1920, época do movimento modernista.
O espetáculo está em fase de criação, e os ensaios começam em julho com elenco formado por atores e atrizes da companhia e da última oficina de interpretação gratuita
– como todas as atividades da Companhia Ensaio Aberto no Armazém da Utopia. A direção artística é de Luiz Fernando Lobo, a montagem da cenografia é de J. C. Serroni, o desenho de luz de César de Ramires, a direção musical e trilha original de Felipe Radicetti e os figurinos de Beth Filipecki e Renaldo Machado, todos parceiros de longa data da companhia. A direção de produção é de Tuca Moraes e a produção de Dani Carvalho.
Monólogo inspirado em Clarice Lispector
Após “O banquete”, serão encenados quatro espetáculos ao longo de um ano. Em setembro, apenas um mês depois de estrear o texto de Mário de Andrade, Tuca Moraes subirá sozinha no palco da Sala Sérgio Britto, definido por Lobo como “um teatro-laboratório, para plateias menores, inclusive com novos horários,”. O monólogo “Palavras” é inspirado no universo da obra de Clarice Lispector.
Depois disso, a companhia irá montar dois espetáculos de seu repertório: em março estreia “A Exceção e a Regra”, escrita por Bertolt Brecht, que teve todas as apresentações lotadas em 2023, quando a Ensaio Aberto celebrou 30 anos de existência. E em agosto do ano que vem, estreia “Olga”, um espetáculo-documentário escrito e dirigido por Luiz Fernando Lobo sobre Olga Benario Prestes, assassinada pelo nazismo após ser entregue pelo presidente Getúlio Vargas durante a ditadura do Estado Novo.
Acesso ao mar, restaurante e centro de pesquisa
Com a inauguração do anexo, em agosto, o Armazém da Utopia também ficará aberto ao público durante o dia. Quem quiser conhecer o espaço poderá fazer uma visita guiada aos bastidores da casa da Companhia Ensaio Aberto, conhecer suas coxias e espaços cênicos, aprender sobre o passado portuário da região, e até pesquisar o imenso acervo da companhia, que está sendo totalmente digitalizado. Só de objetos de cena e figurinos existem mais de 5 mil itens, cadastrados e inventariados por espetáculo, personagem e ano de montagem – um material precioso para pesquisas sobre artes cênicas e teatro dos trabalhadores.
Mas o armazém será mais do que um espaço das artes cênicas. Os visitantes terão a opção de um restaurante à beira do cais, de frente para o mar, e também um bar. Haverá uma travessa na qual o público que transita no Boulevard Olímpico poderá acessar o armazém e caminhar até a beira do cais. “Nada disso seria possível sem a mudança que houve na cultura do país nos governos Lula e Dilma, e sem a participação decisiva do
governo Eduardo Paes, de diversos ministros e parlamentares”, afirma Lobo. “Mais do que nunca, a casa da Companhia Ensaio Aberto será um espaço aberto, de muitos coletivos, com mais oficinas e espetáculos gratuitos, mais pesquisa, mais cultura. Um porto aberto para todos”, completa Tuca.
Patrocinadores
O Armazém da Utopia tem o patrocínio master do Instituto Cultural Vale e da Shell, apoio financeiro do BNDES – maior financiador da obra de restauro e reforma – e das empresas MRS Logística, Multiterminais e Universidade Estácio de Sá/Instituto Yducs, por meio da Lei Rouanet, além de parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro, com o órgão municipal Companhia Carioca de Parcerias e Investimentos (CCPAR), com o Porto Maravilha e com o Governo Federal – sobretudo com o Ministério da Cultura.
Para o BNDES, “o projeto de restauro e modernização do Armazém da Utopia integra, ressignifica e amplia o dinamismo da região portuária do Rio, uma área renovada da cidade. É um equipamento cultural que tem como mérito democratizar o acesso ao espaço de uso coletivo e promover a inclusão social, ampliando o alcance para um público mais amplo e promovendo as cadeias produtivas da cultura”, destaca a Chefe de Departamento de Desenvolvimento Urbano, Cultura e Turismo do banco, Luciane Gorgulho.
O patrocínio ao projeto é mais uma iniciativa da Shell para valorizar a cultura, contribuindo para o desenvolvimento da economia criativa do país. “Apoiamos o Armazém da Utopia por acreditarmos que a instituição tem um papel fundamental na construção, conservação e difusão da nossa herança cultural com ações que promovem o desenvolvimento humano e geram valores para toda nossa sociedade através da cultura”, afirma Alexandra Siqueira, gerente de Comunicação Externa da Shell Brasil, empresa que está há 111 anos no país.
Serviço
Inauguração: 29/05/2024
Horário: 18h (abertura da casa às 17h)
Endereço: Orla Conde – Armazém 6 – Cais do Porto, Rio de Janeiro – RJ Ingresso: www.sympla.com.br/produtor/armazemdautopia
Crédito das fotos: Divulgação